Responsabilidade Civil da Concessionária de Rodovia por Colisão com Animais na Pista
- Rafael de Amorim
- 11 de out.
- 6 min de leitura
1. Um casamento interrompido: o início da história
Era fim de tarde quando Rodrigo pegou a estrada rumo ao interior para o casamento da prima. O terno pendurado no banco, o buquê ao lado e o GPS indicando mais uma hora de viagem. No entanto, ao cruzar um trecho mal iluminado da rodovia pedagiada, um vulto atravessou repentinamente sua frente. O impacto foi inevitável — um cavalo havia invadido a pista. O carro ficou destruído, e Rodrigo, atônito, escapou por pouco de uma tragédia. O animal morreu na hora.Dias depois, o que seria uma lembrança de alegria familiar se tornou uma batalha judicial contra a concessionária, responsável pela via, que nada fez para impedir o ingresso de animais em um trecho de tráfego intenso e iluminação precária.

2. O dever de segurança nas rodovias concedidas
As concessionárias de rodovias exercem serviço público delegado e, portanto, assumem o dever jurídico de garantir a segurança, manutenção, sinalização e conservação da via. Ao pagar pedágio, o usuário adquire mais que o direito de transitar: adquire a expectativa legítima de segurança e vigilância adequada.
A presença de animais na pista, especialmente em rodovias de fluxo rápido, constitui falha na prestação do serviço, pois revela ausência de fiscalização, cercamento ou manutenção eficaz das estruturas de contenção.Trata-se de fortuito interno, ou seja, um evento previsível e inerente ao risco da atividade econômica da concessionária, não apto a afastar a responsabilidade civil.¹
3. Fundamentos legais da responsabilidade objetiva
A responsabilidade civil das concessionárias é objetiva, bastando a demonstração do fato, do dano e do nexo causal, independentemente de culpa. Tal responsabilidade decorre da Constituição Federal, do Código de Defesa do Consumidor, do Código Civil e da Lei das Concessões.
a) Constituição Federal
Art. 37, § 6º, CF/88:“As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.”²
b) Código de Defesa do Consumidor
Art. 14, caput, CDC:“O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos.”³ Art. 22, CDC:“Os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos.”⁴
c) Código Civil
Art. 927, parágrafo único, CC:“Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.”⁵
d) Lei das Concessões (Lei nº 8.987/1995)
Art. 25:“Incumbe à concessionária a execução do serviço concedido, cabendo-lhe responder por todos os prejuízos causados ao poder concedente, aos usuários ou a terceiros, sem que a fiscalização exercida pelo poder concedente exclua ou atenue essa responsabilidade.”⁶
4. Cuidados e provas sugeridas para o usuário lesado
Em caso de colisão com animal na pista, é fundamental reunir provas que demonstrem a falha do serviço. As principais são:
Registro de ocorrência policial ou comunicação imediata à concessionária, com número de protocolo;
Fotografias do local, do animal e dos danos no veículo, com data e hora;
Testemunhas presenciais ou de equipes de resgate;
Orçamentos de reparo (preferencialmente três), que servirão de base para a indenização;
Comprovante de pagamento do pedágio, que reforça a relação de consumo;
Registros de GPS, aplicativos ou câmeras veiculares, comprovando o trajeto e a hora do sinistro.
Essas provas são essenciais para demonstrar os três elementos da responsabilidade civil: fato, dano e nexo causal.
5. A jurisprudência consolidada: o fortuito interno e o dever de indenizar
O Superior Tribunal de Justiça firmou entendimento repetitivo sobre o tema:
STJ – REsp 1.908.738/SP (Tema Repetitivo 1.122, julgado em 26/08/2024):“As concessionárias de rodovias respondem, independentemente da existência de culpa, pelos danos oriundos de acidentes causados pela presença de animais domésticos nas pistas de rolamento, aplicando-se as regras do Código de Defesa do Consumidor e da Lei das Concessões.”⁷
A tese fixada consolidou a responsabilidade independente de culpa, afastando a aplicação da “culpa administrativa” e reafirmando o princípio da primazia do interesse da vítima.
Nos tribunais estaduais, o entendimento é pacífico:
TJ-RJ – Apelação 2619342-20.2020.8.19.0068 (2024):“Responsabilidade objetiva da concessionária demandada. Dever de conservar e fiscalizar a rodovia, evitando o ingresso de animais. Comprovados o fato, o dano e o nexo de causalidade, impõe-se o dever de indenizar.”⁸
TJ-RJ – Apelação 2702997-20.2017.8.19.0204 (2021):“A presença de animais na rodovia está inserida no risco da atividade econômica da concessionária, tratando-se de fortuito interno que não afasta sua responsabilidade.”⁹
TJ-RJ – Apelação 815558-20.2014.8.19.0046 (2023):“Basta a comprovação do fato, do dano e do nexo causal, sendo desnecessária a prova de culpa. Dano moral fixado em R$ 8.000,00 em observância à proporcionalidade e razoabilidade.”¹⁰
O Recurso Especial nº 1.908.738/SP (Tema Repetitivo 1.122 do STJ) consolidou o entendimento de que as concessionárias de rodovias respondem objetivamente pelos acidentes causados pela presença de animais domésticos nas pistas de rolamento. O caso concreto envolveu um motorista que colidiu com um cachorro em rodovia administrada pela Ecopistas. A concessionária alegava que o evento era imprevisível e atribuível exclusivamente ao dono do animal, mas o Superior Tribunal de Justiça afastou tais argumentos e fixou tese de repercussão geral, aplicável a todo o país.
O STJ reconheceu que o usuário de rodovia pedagiada é consumidor e, portanto, protegido pelo Código de Defesa do Consumidor, sendo a concessionária uma fornecedora de serviços. Assim, deve prestar serviço adequado, eficiente e seguro, conforme o art. 22 do CDC. Quando ocorre acidente em razão da presença de animal na pista, há falha na prestação do serviço, pois é dever da concessionária adotar medidas preventivas que impeçam o ingresso desses animais, como cercas, rondas, sinalização e manutenção das barreiras físicas.
A Corte Especial reafirmou o regime de responsabilidade civil objetiva, previsto no art. 37, §6º, da Constituição Federal, e nos arts. 14 do CDC e 25 da Lei nº 8.987/1995 (Lei das Concessões). Isso significa que basta a comprovação do fato, do dano e do nexo de causalidade para surgir o dever de indenizar — independentemente de culpa. O STJ também destacou que a teoria da “culpa administrativa” é inaplicável às concessionárias privadas de serviço público, pois sua responsabilidade decorre do risco da atividade.
O Tribunal rejeitou a alegação de que a presença de animal seria “caso fortuito” ou “culpa de terceiro”. A decisão classificou o evento como fortuito interno, ou seja, um risco previsível e inerente à própria exploração da rodovia, não apto a excluir a responsabilidade civil. A concessionária, ao explorar economicamente o serviço público, deve se aparelhar para prevenir tais ocorrências, sendo irrelevante o fato de não ser possível garantir vigilância absoluta.
Outro ponto relevante do acórdão foi o reconhecimento dos princípios da prevenção, da solidariedade e da primazia da vítima. O dever de prevenir danos se impõe às concessionárias como expressão do princípio da boa administração pública, e o interesse da vítima deve prevalecer, ainda que não seja identificado o dono do animal. O acórdão enfatiza que o dever de fiscalização do poder público (como ANTT ou PRF) não exime a concessionária de sua responsabilidade, conforme o art. 25 da Lei das Concessões.
Em conclusão, o STJ fixou a seguinte tese: “As concessionárias de rodovias respondem, independentemente da existência de culpa, pelos danos oriundos de acidentes causados pela presença de animais domésticos nas pistas de rolamento, aplicando-se as regras do Código de Defesa do Consumidor e da Lei das Concessões.” A decisão tem caráter vinculante (art. 927, III, CPC) e consolida a proteção dos usuários das rodovias, garantindo que, diante de acidentes previsíveis e evitáveis, prevaleça o dever de indenizar e a tutela da segurança como elemento essencial do serviço público.
6. A quantificação dos danos
A indenização material é calculada com base nos orçamentos apresentados e nos valores efetivamente despendidos.Já o dano moral decorre in re ipsa, isto é, presume-se diante do susto e do risco de vida experimentados.Os tribunais vêm fixando valores médios entre R$ 5.000,00 e R$ 10.000,00, conforme a gravidade e as circunstâncias do caso concreto.¹¹
7. Conclusão
A rodovia pedagiada é um espaço de confiança pública. O pedágio não remunera apenas o asfalto, mas a promessa de segurança e eficiência.A presença de animais soltos na pista é falha de prestação do serviço e caracteriza fortuito interno, o que torna inafastável o dever de indenizar.
O sistema jurídico brasileiro, ancorado na Constituição, no CDC, na Lei das Concessões e no precedente vinculante do STJ (Tema 1.122), impõe à concessionária o dever de zelar pela integridade física e patrimonial dos usuários.Aqueles que sofrem prejuízos devem buscar seus direitos, munidos de provas e cientes de que a jurisprudência está firmemente do lado da segurança e da responsabilidade.
Notas de Rodapé
STJ, REsp 1.908.738/SP, Rel. Min. Herman Benjamin, julgado em 26/08/2024 (Tema Repetitivo 1.122).
Constituição Federal de 1988, art. 37, § 6º.
Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/1990), art. 14.
Idem, art. 22.
Código Civil (Lei nº 10.406/2002), art. 927, parágrafo único.
Lei nº 8.987/1995 (Lei das Concessões), art. 25.
STJ, REsp 1.908.738/SP (Tema 1.122) – precedente obrigatório.
TJ-RJ, Apelação 2619342-20.2020.8.19.0068, Rel. Des. Mônica Maria Costa Di Piero, julgado em 18/04/2024.
TJ-RJ, Apelação 2702997-20.2017.8.19.0204, Rel. Des. Marco Aurélio Bezerra de Melo, julgado em 16/07/2021.
TJ-RJ, Apelação 815558-20.2014.8.19.0046, Rel. Des. Elton Martinez Carvalho Leme, julgado em 27/10/2023.
TJ-RJ, Apelação 92848-20.14.8.19.0068, Rel. Des. Antônio Iloízio Barros Bastos, julgado em 25/08/2017; TJ-RJ, Apelação 1625-20.2008.8.19.0023, Rel. Des. Cristina Tereza Gaulia, julgado em 21/07/2015.



































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